domingo, 17 de junho de 2012

Algodão, locomóveis e bolandeiras

Na Lagoa do Leite, município de Brumado, Osório fazia o beneficiamento primário do algodão plantado por ele mesmo ou por terceiros. Era um sistema rústico de descaroçamento, ou seja, de separar a pluma do caroço. O equipamento, também chamado de bolandeira, já representava uma evolução face às primeiras técnicas, mas mesmo para a década de 1940, era tecnologicamente ultrapassado.

O mecanismo começou a ser montado, em 1913, com a ajuda do pai de Isaura, João Pedro de Lima, logo após o casamento da filha, e entrou em operação pouco tempo depois.

Observe-se que no final do século XVIII, mais precisamente em 1793, um cidadão norte-americano, chamado Eli Whitney, inventara um descaroçador movido a vapor, que representou um grande avanço. Era a Revolução Industrial que a partir da Inglaterra, mas também nos Estados Unidos, iniciava uma grande transformação na produção e na economia mundial. 

Enquanto isto, prevalecia no Brasil um decreto real de 1785 que havia ordenado a destruição, em sessenta dias, de todos os "teares de galões, de tecidos, ou de bordados, de ouro e de prata, de veludos, brilhantes, cetins, tafetás ou outra qualquer qualidade de seda; de belbutes, chitas, bombazinas, fustões ou outra qualquer qualidade de fazenda de algodão ou linho, branca ou de cores; e de panos baetas, droguetes, saetas, ou de qualquer outra qualidade de tecidos de lã"(1). Tal proibição só foi revogada em 1808, ou seja, mais de 20 anos depois, com a chegada de D. João VI.

A partir daí começa uma primeira fase da industrialização brasileira, que teve um impulso maior no final do século XIX, considerando-se que o equivalente da nossa "revolução industrial" tenha se iniciado em 1930 a 1956.

Nos sertões do Brasil este processo foi ainda mais lento. No Nordeste brasileiro, há registros históricos de "locomóveis" - como eram chamados estes engenhos de ferro a vapor, desde meados do século XIX. Mas essas máquinas conviveram durante certo tempo com outras movidas por tração animal. Neste período não havia motores elétricos no sertão.

Para mover as engrenagens da descaroçadora, Osório utilizava quatro bois, cujas cangas eram amarradas por "tiradeiras" numa "manjarra" - nome da peça que se articulava com polias e rodas que, enfim, movia cilindros, "serras" e "garfos". Se os bois moviam numa direção era para descaroçar algodão, se eram tocados na direção oposta, é porque estava se produzindo farinha de mandioca. Neste caso, a engenhoca era acoplada a "rodas" típicas de casas de farinha.

Enquanto Osório utilizava um descaroçador movido a bois, o vizinho Zezé - José Augusto dos Santos(2), mantinha na região um "locomóvel". Era uma máquina de ferro que dispunha de uma caldeira cujo vapor era produzido a partir da queima de lenha. Desta forma as estruturas se movimentavam sem precisar o uso de animais.

Naturalmente, havia um ganho de produtividade na utilização da máquina a vapor, o que contribuiu para que paulatinamente o descaroçamento realizado no sistema a base de tração animal deixasse de  ser vantajoso em função da pequena escala da produção. 

Já em meados do século XX, os locomóveis foram gradativamente sendo abandonados, superados pela consolidação das usinas de algodão, estruturas maiores e com produtividade crescente.

A experiência de Osório, mesmo com equipamentos que ficaram obsoletos, estimulou os seus descendentes a se manterem na atividade algodoeira. Seja no plantio ou no processamento industrial, filhos, netos e bisnetos continuaram a sua saga, enfrentando cada um ao seu tempo, outros obstáculos: maiores custos com pesticidas para reduzir as pragas que atacavam as plantações, concorrência com produto importado, oscilações na oferta de insumos da produção, custos de transporte, além dos desafios da atuação em outras etapas do beneficiamento industrial.


(1) In: Lycurgo Santos Filho. "Uma comunidade rural do Brasil antigo".
(2) Zezé era irmão de Fidelcino, casado com uma irmã de Isaura.

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