O cilhão de Lourdinha


Aos 90 anos, meu pai tem uma memória impressionante e um infindável repertório de causos. Lembranças de situações e fatos que se passaram há oitenta anos, ou que lhe foram contados há sessenta ou setenta anos, são reproduzidos com riqueza de detalhes. Sempre há uma pitada de humor e retrata acontecimentos que em geral envolveram familiares.
Esta história tem como personagem principal Osório, seu pai, e se passa por volta dos anos 1930. Antes de qualquer coisa, é indispensável saber que o acontecido se deu na região situada entre os municípios de Brumado e Livramento. Ali havia inúmeros lugarejos e fazendas. A família morava na fazenda Lagoa do Leite, mas se deslocava a visitar amigos e parentes em Ubiraçaba, Itanagé, Itaquaraí, Iguatemi, Correias, Canela de Ema, Tabuleiro. Havia também outros locais menos conhecidos como Telha e Saco, distantes mais de 15 léguas, e cuja denominação permite o arremate desta história.
O meio de locomoção mais comum era equinos e equídeos - cavalos, éguas, burros e mulas. Como de costume se usava sela nas montarias, as mulheres, no entanto, costumavam usar o cilhão. Não se trata do cilhão de trabalho - uma correia que serve de apoio ao cavaleiro ou onde se prende outros apetrechos, como o arado puxado a boi. Trata-se de antigo acessório, uma sela feminina que lhes permitia sentar de lado, tornando-as mais elegantes.
Isaura, mulher de Osório, tinha um cilhão, assim como Lourdes, a filha mais velha a quem o pai sempre procurava agradar. Como as viagens não eram tão frequentes, sempre aparecia um vizinho, aparentado ou não, que pedia o equipamento emprestado. Sendo normal tomar-se de empréstimo uma sela convencional, imagine-se um cilhão, que não era um item tão comum assim.
O fato é que de tanto emprestar, o cilhão de Dona Miúda foi ficando bem estragado pelo uso, de modo que não faltou quem pedisse emprestado aquele pertencente a Lourdes, mais novinho.
Osório, que era sempre muito solicito, achou que já era abuso e não pensou duas vezes. Negar, não tinha como, então, pegou o cilhão, colocou-o dentro de um saco, amarrou bem, e com uma corda passada na cumeeira, puxou para cima, de maneira que o acessório ficou perto do telhado.
Mentir, também não iria, mas quando chegava alguém pedindo o equipamento emprestado, Osório dizia: "olha, tem esse aqui, que a Isaura usa. O outro, de Lourdes, posso emprestar, mas vai dar um pouco de trabalho. É que ele está no saco, lá perto da telha". Naturalmente, o vizinho pensava se tratar das duas localidades bem distantes.
A resposta como era de se esperar vinha certa: "É, seu Osório, realmente é muito trabalhoso, não vai dar não, obrigado".
Assim, Lourdinha pôde usar o cilhão por algum tempo, sem ter que dividir com tanta gente.

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