Parabelum

Por volta de 1930, a Lagoa do Leite foi visitada por um grupo incomum: um destacamento policial que estava procedendo ao desarmamento da população civil no interior da Bahia. Era um grupo pequeno de soldados comandados pelo tenente João Duque, e não se comparava em tamanho ao que seguiu para Carinhanha mais ou menos do mesmo período.

O agrupamento era maior porque tinha a missão de fazer o enfrentamento ao Coronel João Duque. Seguia em três caminhões: o primeiro deles levava uma bandeira vermelha, e representava a guerra; o segundo caminhão portava uma bandeira verde, da esperança"; e a simbologia se encerrava no último carro do comboio com a bandeira branca da paz.

A estrada, recém construída no governo Góes Calmon, era precária, e só raramente passava um veículo, mas não faltava quem parasse prá pedir informações. Seu Leolininho, que morava à margem da rodovia já estava cansado de responder a tanta pergunta. "Quanto tempo gasta prá ir até Caetité?" "Brumado ainda fica longe?" "Onde é que tem um lugar prá se fazer as necessidades?" Toda hora  tinha que levantar da cadeira. Então mandou avisar: "uma levantada minha é 5" "uma levantada de  Mariquinha é 10". A moeda era mil réis, e a levantada de  Mariquinha era mais cara, porque implicava em "passar um café" ou providenciar alguma comida.

Sim, o desarmamento...

O desarmamento no sertão da Bahia tinha diferentes motivações de natureza política. Durante muito tempo, houve estímulo à formação de milícias reforçando o poder dos coronéis, sob a alegação de dar combate a Canudos de Conselheiro, a Lampião, ou à Coluna Prestes. Tudo isto conduziu à existência de grupos armados autônomos e bandos, gerando violência e motivando o cidadão comum a defender-se como podia, invariavelmente com armas.

Era fuzil, parabelum, revólver, pistola, rifle de repetição, cruzeta, carabina, mosquete, mosquetão. Calibre ponto44, ponto11. 7,65 cano curto, cano longo. Winchester, Mauser, Combalains, Mannlichers, Velodog e Bulldog 5,5mm. Era de todo tipo de arma, calibre e marca.

A movimentação de grupos armados era intensa. De fevereiro a julho de 1926 a Coluna Prestes, integrada por 1.200 homens atravessou a Bahia, em sua maioria marchando a pé, com armas velhas e pouca munição. Passaram próximo a Lençóis, Rio do Antônio, Minas do Rio de Contas, Condeúba, Ituaçu, e outros municípios. Coronéis baianos, entre os quais Horácio de Matos e Franklin Lins de Albuquerque, com o apoio financeiro e material do governo federal organizaram muitos batalhões, chegando a reunir 3.500 homens, para dar combate à Coluna. 

Anos antes, em 1920, o mesmo coronel Horácio de Matos havia ameaçado marchar sobre Salvador à frente de 3 mil homens, contrariado com a vitória de J.J. Seabra nas eleições realizadas em dezembro de 1919.

Em 1928, a partir de Pernambuco, Lampião entra no território da Bahia, causando muito medo e também admiração entre a população rural. Isto porque as volantes da polícia militar que o perseguiam, geravam tanto ou mais temor.

Com a Revolução de 1930, uma nova ordem levou a prisão de vários Coronéis entre os quais Franklin Lins e Albuquerque, Marcionílio Souza, João Duque e outros, tendo culminado com o rumoroso assassinato do coronel Horácio de Matos, na capital.

Em 1932, inicia-se a campanha e o combate sistemático a Lampião e seu bando. Também em 1932, a Bahia envia tropas para lutar em São Paulo contra a revolução constitucionalista.

Assim, com tanta movimentação militar e paramilitar em um tempo histórico tão curto é possível imaginar que um rastro de armas tenha ficado para trás. Foram anos e anos de refregas e guerras, inclusive familiares, e as armas serviam para a proteção individual, para a caça, ou para qualquer eventualidade.

Neste contexto é que um destacamento militar sob o comando do Tenente João Antônio descia a estrada em direção a Caetité quando resolve tomar o caminho da Lagoa do Leite. Esta movimentação não deixou de assustar a todos. Logo o comandante da operação se apresentou a Osório, informando que estabeleceria ali uma base para descanso da tropa. Adiantou que não se preocupasse, que a estadia era curta e que só precisava de pouso para ele próprio, João Antônio. Os demais se resolveriam em qualquer lugar, porque tinham trazido equipamento para dormir e cozinha com mantimentos.

Entrando na casa não deixou de apreciar o rifle encostado na parede, em bom estado de conservação, mas que precisava de manutenção. Ele mesmo, disse o tenente, providenciaria a limpeza e quando voltasse devolveria a arma. "Bonita arma", ressaltou. Tratava-se de uma Winchester 1873, conhecida como papo amarelo devido ao elevador da munição ser na cor amarela (feito em bronze ) - era a Winchester mais usada no Brasil. A observação foi ouvida com certa desconfiança pelo anfitrião. "Será que a arma vai voltar mesmo?", pensou.

Foi um corre-corre, quem tinha condição de esconder sua arma, escondia. Se não tinha jeito então entregava, mas de em muitos casos era providenciado algum dano irreversível no equipamento bélico. Seu Antônio do Pau Ferro tinha uma pistola conhecida como "brole" ou Browning, arma pequena, que tinha normalmente calibre 9 mm - cano de 3,5 polegadas. Entregue, esta arma dificilmente foi utilizada após o seu recolhimento pela polícia, devido às marteladas que levou.

Osório e João Antônio conversaram na sala da casa da Lagoa do Leite, e chegada a hora, o oficial foi convidado para o almoço, assim como um policial que fazia as vezes de ordenança. Seguiram pelo corredor que ligava até a sala onde estava a mesa bem servida, com arroz, feijão, legumes e carne.

Ao cortar a carne, o convidado, se acha no direito de encontrar defeito e comenta que "a carne estava dura ou a faca não estava afiada". Osório, como demonstração de hospitalidade, pede a faca, vai ao alpendre e numa pedra de amolar, capricha no fio do cutelo, que depois de lavado, retorna às mãos do militar. "Agora sim, está cortando que é uma beleza!", exclamou.

Vendo o que se passara, o ordenança entrega a sua faca para que fosse também amolada. Osório, sentado à mesa, com a faca na mão, se abaixa e em movimentos rápidos faz práá, práá, práá, raspando a faca no tijolo do piso, movimentando-a de um lado e de outro. "Pronto!", diz, e entrega o talher para o visitante, que de cara feia, entre surpreso e enfezado, o recebe de volta e continua a comer.

Pois é assim, hierarquia vale também para a faca, pois o tratamento diferenciado privilegia a patente mais alta. O fato é que Osório demonstrou que tinha "confiança no taco" como se diz à beira de uma mesa de bilhar.

NVJ

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